domingo, 17 de outubro de 2010

Inácio Araújo se rende às séries




Mas é necessário observar que a instância de consagração continua nas mãos do cinema/diretor...




In: Folha de São Paulo, 17/10/2010
CRÍTICA DRAMA

"Boardwalk Empire" demonstra que vanguarda migrou do cinema para TV
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Admitamos de uma vez: a vanguarda do cinema americano hoje está nas séries para TV. Só faltava, para comprovar, que um diretor de primeiríssima linha, um autor da envergadura de Martin Scorsese, viesse a dar confirmação do fenômeno.
Com "Boardwalk Empire", que estreia hoje na HBO, está feito: Scorsese não só assumiu a direção do episódio piloto como figura como um dos produtores executivos da série criada por Terence Winter sobre o submundo de Atlantic City durante a chamada "era da proibição", a partir de 1920.
Submundo é modo de dizer, já que o personagem central da série é Nucky Thompson (Steve Buscemi), que desde a primeira sequência assume a dupla identidade de gângster e político e mostra-se disposto a agir com desenvoltura em ambas.
Ao episódio não faltam acontecimentos: da festa que marca o início da Lei Seca à primeira carga clandestina, ao primeiro roubo de carga, ao surgimento de uma nova geração de gângsters (Al Capone, discreto, entre eles).

MÃO DO DIRETOR
Todo o tempo sente-se o estilo de Scorsese e esse tipo de marca forte talvez seja inédito nas séries.
Não é apenas a câmera em movimento constante nem os planos curtos: esses são aspectos exteriores que servem para melhor criar um ambiente e uma dinâmica de observação desse mundo em que corrupção e santidade misturam-se (logo no início, Thompson faz um discurso contra o álcool para um grupo de senhoras; em seguida, vai para uma festança onde se celebra a bebida).
O realismo, outra marca de Scorsese, também se faz presente. Desde os cuidados para restituir a época à descrição dos gângsteres (entre os quais, novatos e antigos, impera a mixaria), é no universo scorsesiano que nos encontramos. Como as coisas seguirão nos capítulos seguintes, é a conferir, já que a tradição das boas séries é a de engrossar o caldo à medida que os episódios se sucedem. Por ora, é certo que o tom está dado e terá de ser seguido.
Prova de que na TV a audácia, hoje, é maior que no cinema. Falando nisso: a abertura, baseada nos quadros do pintor belga René Magritte, é notável.

NA TV

Boardwalk Empire
Dois primeiros episódios da série
QUANDO hoje, às 22h, na HBO
CLASSIFICAÇÃO 16 anos
AVALIAÇÃO ótimo

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A Cura e a expectativa de um final

Acabou ontem a primeira temporada de A Cura e o suspense permanece com força total. O gancho do final do último episódio é para deixar tenso todo telespectador desavisado. Não era mesmo o final. Seguindo o modelo norte-americano, a Rede Globo inova com uma série que não se encerra e nos faz perguntar: quando começa a segunda temporada? O arco dramático principal foi resolvido, é verdade. O mistério que rondava a história até o penúltimo capítulo foi revelado de forma coerente, mas outras perguntas surgiram e um novo rumo foi dado.

A Cura começou em 10 de agosto de 2010, com episódios seriados sempre às terças-feiras. Escrita por João Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein, direção de Ricardo Waddington e Gustavo Fernandez e fotografia de Ricardo Gaglianone contava duas histórias paralelas em tempos distintos. No século XVIII, o garimpeiro Silvério, um homem sem escrúpulos que mata o amigo ao encontrarem um diamante e começa seu império maltratando escravos, enganando a coroa portuguesa e subjugando quem se aproxima. Nos tempos atuais, Dimas retorna a cidade natal onde é considerado um assassino. Quando criança ele foi encontrado retalhando um colega que havia caído de uma árvore. Sua família é descendente de Silvério que é visto como um benfeitor local e esta parece, a princípio, a única ligação dos dois tempos. Acontece que a cidade guarda outro mistério, o médico Otto, visto como curandeiro por uns e assassino por outros, tem na voz de Edelweiss sua maior defensora. Ela é quem diz a Dimas que ele veio para terminar o trabalho de seu antecessor, pois tem o mesmo dom de cura.

A série começou com essa trama de mistério base: Dimas tem um dom da cura ou é um esquizofrênico perigoso? E Otto? E qual a ligação de ambos com a história do século XVIII? Não é a primeira vez que João Emanuel Carneiro e Ricardo Waddington têm, na identidade do seu protagonista, o suspense que sustenta uma história. A telenovela A Favorita baseava-se na dúbia personalidade de Flora e Donatela, uma das duas estava mentindo e o público só descobriu isso no capítulo trinta. Em A Cura, eles foram além, pois várias eram as possibilidades. Apenas no penúltimo episódio as pistas levaram a uma dedução que se confirmou no último episódio da temporada. Agora o público sabe quem é Dimas, quem é Otto, quem foi Silvério e quem foi o menino Ezequiel que apareceu na trama do século XVIII no final do terceiro episódio. Resta saber o que nos reserva a segunda temporada. Pois, se os mistérios terminaram, o suspense da primeira temporada muda de foco, veremos uma caçada ao monstro e não mais uma rede a ser desvendada.

É de se admirar o que a equipe fez nesses nove episódios. O roteiro bem amarrado nos deixava em suspense constante. A direção e a fotografia colaboravam com a construção dos efeitos característicos. A câmera subjetiva, as penumbras, a trilha. A Cura é, sem dúvidas, uma série para marcar a história da teledramaturgia da Rede Globo. O elenco também estava afinado. Selton Mello e Juca de Oliveira criaram um embate interessante, sendo muito mais complicado de compreender que um deles era um assassino a princípio. Andreia Horta chega à emissora após o sucesso como Alice da HBO e consegue dar conta de sua Rosângela. Mesmo o preferido do autor, Carmo Dalla Vecchia, consegue trazer alguma verdade ao seu monstruoso Silvério, apesar dos trejeitos exagerados. Ary Fontoura é outro destaque como o médico cético Turíbio. E Eunice Braulio rouba a cena como a bisbilhoteira Nonoca. Ela é o ponto de apoio do telespectador, dando voz aos comentários da cidade e detalhando alguns mistérios passados. Além de ser o alívio cômico ao viver no telefone sem vender um único objeto de sua loja aos turistas.

No geral, A Cura surpreende em todos os aspectos. Por ser um projeto de história totalmente seriada, não apenas com episódios dependentes, mas com temporadas que não se encerram. Ao contrário de Som&Fúria que tem um final ao término da temporada, apesar da possibilidade de continuação. Ou de outras séries que a Globo vem testando como Força Tarefa, onde cada episódio se encerra em si, apesar do arco dramático dos personagens ter uma evolução durante a temporada. Com um bom aparato técnico de roteiro, direção, fotografia, som e elenco, além de uma força nos ganchos, A Cura deixa a expectativa para sua continuação. Torçamos para que não demore muito e que mantenha o nível da primeira.

Episódio final (com spoilers)
Após oito episódios de suspense, A Cura parecia ter um desfecho ao final de sua temporada. Quando Otto começa a revelar sua verdadeira face, fica claro ao telespectador que Dimas é, não apenas o mocinho da história, como a reencarnação de Ezequiel, o menino curandeiro. Ele fala a Otto a mesma frase que o menino falou a Silvério: A você eu não curo. Estava montada a ligação. Dimas curou Graciema na frente de Rosângela, tudo parecia se resolver. Mas, agora, Otto matou a mulher de Turíbio e todas as pistas apontam para o rapaz. Nem mesmo Rosângela pode acreditar em sua inocência.

No último episódio, o suspense não é mais o mistério de quem seja Otto ou Dimas, mas, como o rapaz vai provar sua inocência e desmascarar o pai. A tensão é constante, as cenas envolventes. A montagem em paralelo de passado e presente é ainda mais eficiente, fazendo todas as ligações temporais e mostrando que a história está apenas se repetindo. A cena em que Camilo é cimentado na parede em paralelo com as vítimas de Silvério é forte, chega a dar arrepios. Só ficou um pouco forçado a forma como ele consegue escapar dali. Já o momento-chave em que Dimas tem o pescoço de Otto ao alcance de seu bisturi, da mesma forma que Ezequiel tinha Silvério, é tensa. A câmera repete os mesmos movimentos, recriando a situação três séculos depois. Ezequiel tem que matar para salvar a mãe, Dimas para salvar Rosângela. A história tinha que ser diferente, para quebrar o ciclo.

A solução pareceu coerente. Dimas preso, Camilo prometendo tirá-lo de lá e Rosângela acordando no hospital, deixam a expectativa da continuação. É um excelente gancho de temporada. Mas cheio de furos. Enquanto Dimas, Otto, Rosângela e Ciro estavam no galpão todos pareciam convencidos de que o antigo médico estava vivo e era o responsável pelos crimes. Apenas Turíbio em uma raiva exageradamente maniqueísta acusava Dimas. Camilo foi uma vítima direta e sabe que Ciro era cúmplice do médico. Até a fofoqueira Nonoca garantiu ver Otto e Rosângela entrando na casa. É difícil entender por que não deram nem a possibilidade da dúvida para Dimas? A construção da personalidade de Ciro também é incoerente. Primeiro ele justifica a Dimas que ajuda Otto porque ele é Silvério, seu antepassado. Depois, quando Dimas está com o bisturi na garganta do médico ele grita “mata esse monstro, nos livra dele”. Por fim, ele confirma toda a história que Otto mandou, acusando Dimas de assassinato. Suas atitudes não fazem no menor sentido.

Ainda assim, o episódio final explicou muito e construiu bem a passagem para o novo rumo da trama. Caso Otto fosse preso, morto, ou qualquer outra solução e Dimas fosse inocentado, tendo até Turíbio ao seu lado, que seria da segunda temporada? O suspense simplesmente acabaria. Agora o clima de caçada, suspense de onde ele estará e como conseguirão pegá-lo dá fôlego para mais uma temporada. Além, claro, do drama que os telespectadores viveram de ver Dimas preso e Rosângela no hospital. O único problema é a inconstante grade de programação de séries da Rede Globo. Fica a expectativa de que exista mesmo uma nova temporada e logo.